quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sobre a cegueira social

Sobre a cegueira social

Tudo que existe, só existe através de nossa percepção. Schopenhauer diria que não existe uma terra, não existe um sol. Existe, sim, uma mão que toca a terra e olhos que captam a luminosidade do sol. Toda nossa noção de mundo e realidade passa através de nossa percepção.












E quando não percebemos, enquanto sociedade, certos aspectos do mundo que nos rodeia?


Microorganismos não existiam até o final do século XVII, quando Antonie van Leeuwenhoek observou os primeiros seres aos quais deu o nome de “animálculos”. Bactérias passaram a existir somente quando alguém as observou e indagou sobre a existência das mesmas. Existem outros exemplos: para muitas pessoas ao redor do mundo, em pleno século XXI, pareceria no mínimo uma grande bobagem argumentar que a Terra gira em torno do Sol e que existem muitos outros planetas, gigantes gasosos, luminosas nebulosas, buracos negros super massivos no centro de galáxias com bilhões de sóis.

Estas entidades não existem e nunca existirão para a grande maioria da população mundial. Muitas destas pessoas não chegarão a ter educação suficiente para que este conhecimento seja real, para que possa pertencer a suas realidades cotidianas. Mas, onde reside o perigo nessa história? O perigo reside justamente na falta de referenciais, sejam estes históricos, astronômicos ou biológicos, para a construção do ser social. Quando elementos importantes para uma percepção acurada da realidade estão faltando, cria-se um nicho fértil para a manipulação de massas. Com efeito, uma educação falha, superficial e estéril é a principal ferramenta de dominação através dos séculos. A supressão do registro histórico de lutas sociais, assim como a negação do aspecto biológico e evolutivo em prol da divinização de nossa espécie, tem exercido um poderoso efeito de cabresto na dinâmica de nossa sociedade. Controlar o passado (através manipulação do registro histórico e da proposital negligência no ensino da História) é quase uma garantia de salvaguardar a legitimação das estruturas de poder vigentes. Do mesmo modo, ao negar a ascendência comum de nossa espécie com todas as outras deste planeta (nós e o espinafre temos a mesma tatatatatatatatatatatatatataravó), a superioridade humana sobre o planeta toma forma. Superioridade esta absolutamente questionável, sob amplos aspectos científicos. A superioridade humana sobre os demais seres vivos da Terra só pode ser legitimada através de uma perspectiva criacionista. Entristece-me profundamente ver cientistas renomados – muitas vezes alegadamente ateus – compactuarem com práticas que promovem a utilização indigna de outros seres vivos para fins científicos.

É no mínimo uma atitude hipócrita, para não dizer grotesca. Mas, enfim, este é o ponto em que gostaria de chegar: até que ponto nossa cegueira social se alastra? Pois, para a maioria da população de baixa renda, a simples falta de educação, o excesso de trabalho e a constante exposição à programação da TV aberta é o suficiente para que os cabrestos estejam apertados e em bom funcionamento. Porém, para a pequena parcela da população exposta a uma maior fonte de informação, são necessários mais elementos para azeitar a máquina que perpetua condicionamentos baseados na ignorância. É preciso que essa informação não surta nenhum efeito sobre o cérebro de seu receptáculo. Sabemos sobre evolução, mas nos comportamos como criacionistas. Sabemos sobre o efeito nocivo dos venenos, mas estamos constantemente ingerindo-os em nossa comida. Sabemos sobre a origem social da violência, mas preferimos construir grades cada vez mais altas. Sabemos sobre as conexões do ambiente, dos ecossistemas e dos seres vivos, mas continuamos a consumir freneticamente qualquer porcaria anunciada com o glamour da televisão. Simplesmente pela pueril ilusão de que, enquanto ignorarmos que somos escravos, não seremos escravos. Enquanto ignorarmos nossa estupidez, não seremos estúpidos. Enquanto ignorarmos a mão que nos manipula, teremos algum livre-arbítrio. Pode-se supor que, enquanto nas camadas mais baixas a ignorância é simplesmente imposta, nas altas camadas da sociedade ela é vendida e comprada, barganhada como um must have cravejado de diamantes. Eu vejo a ignorância estampada nos olhos de ricos e pobres, homens e mulheres, todas as idades, credos, cores... A ignorância imposta, a ignorância comprada, a ignorância usada como uma droga necessária para o alívio de uma rotina estafante, um ópio, um gás hilariante, um sedativo forte que cobre o espelho da consciência e gera inação. A ignorância é até mesmo um fator de coesão social: aquele que sabe e questiona é excluído, muitas vezes humilhado, queimado em fogueiras inquisitivas. O dogma é a coqueluche dos grandes grupos sociais. Afinal, em terra de cegos, quem tem um olho não é rei: é herege.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Catarina e a imutável simbologia da morte

Estou mudando de apartamento. Como em qualquer mudança que já fiz, uma das partes mais interessantes é definir onde vai ficar o toca-discos e quais os quadros, gravuras e pôsteres que irão figurar nas paredes. Música, filosofia, fotografias diversas... foram diversos os símbolos que compartilharam até hoje o mesmo teto que eu. O toca-discos ainda tem lugar cativo na minha imaginação enquanto a mudança não é consumada, mas as simbologias, não mais. Afinal, o que é um símbolo, senão uma interpretação errônea e anacrônica de alguma idéia remota, que existia em um ambiente absurdamente diferente de concepções sociais? É ingenuidade tentar preservar certos valores quando o mundo grita por novas concepções, por dinamismo social. E eu acredito que o mundo clama por menos símbolos.














Os símbolos trazem consigo um conjunto pré-concebido de idéias, um pacote de pré-concepções digeridas em massa, muitas vezes dogmáticas, que levam à inércia cerebral. Levam ao acomodamento. Nossa época é única. Nossas vozes são únicas. As bandeiras e as vozes do passado inspiram, mas não podem balizar por completo nossas atitudes, pois nosso tempo é outro. Não que eu acredite ser possível viver sem símbolos, seria ingênuo do mesmo modo. Até mesmo por que, na minha concepção, o trabalho sinérgico de nossas terminações nervosas, nossa química corporal e nossas reações ao ambiente externo se dão através de símbolos. Indaguei-me então sobre um símbolo especial... a caveira.











Embora a conotação da morte seja muito diferenciada nas variadas culturas, temporal e espacialmente, a figura da caveira nos vem relembrar uma verdade tão simples quanto profunda: a nossa efemeridade. A caveira nos faz enxergar a dureza de nossa fugacidade que se esconde sob a pele macia de nosso ego. A morte que iguala a todos. Inevitável, assustadora, libertadora e admirável morte. Medo e fascínio. Aquela que coloca o contraponto a tudo que acreditamos: nosso ser. Um símbolo que não sofre modificações interpretativas com o decorrer do tempo, pois sobrepuja a todas as sociedades, modos de pensar, de viver, de se experimentar enquanto ser planetário.















Acredito que uma das mais carismáticas personagens da simbologia mexicana para o Dias dos Mortos é Catarina, uma elegante dama da sociedade que serve como lembrete de que as diferenças sociais não fazem diferença na hora da morte. Vestir o paletó de madeira sobrepõe-se a todas as espécies, aos bons, maus, infiéis, fiéis, ateus, poetas, bêbados, santos e criminosos. Felizes ou tristes, ricos ou pobres, de alma ou de bens materiais, todos somos feitos da mesma matriz de matéria e energia, e para ela voltaremos. O simples sorriso de uma caveira vem ironicamente trazer à tona aquilo que a maioria das pessoas quer tentar esquecer: que elas estão vivas, e que essa é uma chance única. É, vai ter uma caveira ao lado do meu toca-discos.